PAREIDOLIA - O DEMÔNIO EMBAIXO DA CAMA



Despojado em seu sofá-cama, Ricardo nem acreditava ao ver realizado o seu antigo e grande sonho de morar sozinho. Com aquele controle remoto em mãos, ele tinha o 'total monopólio' daquele largo aparelho de TV, agora, finalmente, todo só para ele. Não haveria nenhuma interrupção. Ninguém 'lhe enchendo o saco'! Uma irmã adolescente querendo ver aquela sua novela voltada para o público jovem, aqueles seus irmãozinhos querendo ver os desenhos da TV à cabo ou sua mãe com aqueles seus 'programas de comadre'. Ricardo agora tinha total liberdade! Veria e faria o que queria na hora que bem entendesse! Ele também dormiria bem tarde e comeria qualquer 'besteira' que lhe 'desse na telha', não se importando se fosse macarrão instantâneo ou comida feita em microondas. Em algumas horas batia certa solidão e até saudade...mas para quê inventaram o celular?! Sua liberdade tão sonhada havia sido conquistada e agora era só literalmente 'deitar na cama'. Mas por falar em 'deitar na cama', há não muito tempo atrás, essa 'liberdade' e atual condição de vida de Ricardo nunca seria possível de se imaginar. Durante sua conturbada infância, um terrível 'transtorno' literalmente assombrava aquela então, pobre criança. Ricardo era atormentado e perseguido por terríveis criaturas produzidas pelo que qualquer um poderia dizer ou se acreditava ser apenas um fenômeno de 'pareidolia'. Durante as madrugadas quando as luzes se apagavam, seu quarto se tornava um verdadeiro 'cenário de filme de terror' com as imagens que aquela assombrada cabecinha infante reproduzia pelas paredes ou até aos pés de sua cama onde surgiam mãos das mais horripilantes a puxar seus pés. Mochilas abertas que se tornavam monstros a lhe espreitar querendo 'devorá-lo', simples mancha na parede que se transfiguravam em faces fantasmagóricas, até a sua própria sombra que o traía também parecendo lhe ameaçar, cadeiras que se moviam sozinhas ou se tornavam 'aranhas gigantes', portas de armários que pareciam, também sozinhas, se abrir junto com outros móveis, além de seus palhacinhos e outros brinquedos, e até mesmo, vultos que rapidamente eram notados pelos 'cantos dos olhos' do garoto. O pobrezinho não dormia direito e com o tempo toda a casa também não dormia mais. Ricardinho muita das vezes acordava no meio da madrugada correndo aos prantos para o quarto dos pais. Algo parecia mesmo assombrar aquele menino. O colo amigo do pai, o seio da mãe, toda aquela conversa séria e os mais dedicados aconselhamentos sobre a 'não-existência' de fantasmas e de qualquer outro ente sobrenatural, era tudo em vão! Todo esse esforço era feito de dia, à luz do sol e todo o conforto que isso lhe dava. Mas quando caía a noite, esta parecia 'inimiga' do pobre Ricardinho que agora já começava a se queixar de estar sendo puxado pelos pezinhos na cama e até levantado por alguém ou 'algo' que sua inocência não conseguia explicar o que era. Aconselhada por amigas, a mãe de Ricardinho, apesar de um pouco cética e de também ter suas suspeitas de que todo aquele assombro do menino era devido aos filmes de terror que o mesmo costumava assistir escondido, resolve levar o garoto para a igreja ou mesmo 'terreiros' para afastar o que parecia ser algum tipo de 'influência demoníaca' na vida daquela família. Orações também eram feitas na casa, onde até ainda mais cético, pai de Ricardinho também participava. Por algum tempo todo esse esforço surtia algum resultado, e o garoto conseguia depois de tanto tempo, ter uma noite tranquila. Mas toda essa alegria durava pouco, pois não demorou para mais uma vez aquele casal e toda a família ser surpreendida por mais um ataque de pânico de Ricardinho que já amanhecia todo urinado devido ao medo que ele sentia durante as madrugadas impedi-lo de levantar para ir ao banheiro. Eles então após se mudarem de casa pela segunda vez, resolvem levar o mesmo para um outro tipo de especialista que dentre outros transtornos como 'paralisia do sono', também diagnosticou a tal 'pareidolia' no menino. E ao ouvir toda a explicação daquele médico, o casal se confortou e até entendeu sobre o que o doutor estava falando, pois muitas pessoas saudáveis, também têm ou em algum momento da vida já desenvolveu esse tipo de 'transtorno', e também por outro lado existia um ligeiro ceticismo quanto aquela situação de Ricardinho por parte dos dois já que numa dessas visões do menino, o mesmo relatara que também chegou a ver 'Freddy Krueger', um personagem fictício, famoso e clássico dos filmes de terror. E com isso, remédios e mais remédios foram diagnosticados, e com o tempo passando, conforme Ricardinho crescia, aquele mal fora deixando pouco a pouco a vida daquele menino assustado e que já começava a ver em plena luz do dia 'duendes dos mais assustadores' no jardim de sua mãe. O já adolescente Ricardinho agora parecia livre de 'seus fantasmas'. Apenas espinhas ou acnes indesejáveis, algum metido a valentão de fundo de sala de aula, ou aquele temido 'não' daquela menina linda e tão desejada, eram as coisas que lhe causavam temor a partir dali. Todos estavam felizes pelo jovem que nem de longe parecia aquele menino que literalmente se assustava com a própria sombra durante sua infância. Aquele período tão conturbado na vida daquele garoto problemático havia se tornado um 'tabu'. Ninguém tocava no assunto naquela casa e assim foi até o momento em que Ricardinho completara a maior idade e após morar numa república de universitários, finalmente consegue a sua 'independência', indo assim morar nesse flat só para ele. E neste flat, num desses dias, ao revirar suas coisas no armário, após pegar e rir com a camisa do albúm 'Fear of the Dark' da banda Iron Maiden que lhe fora ironicamente presenteada por um amigo da república que sabia de seu problema ao notar uma certa fobia de Ricardo quanto ao escuro quando este dormia por lá, ali ele também encontra algo que ele achava que sua mãe havia queimado para acabar de vez com as lembranças daquela época sombria. No meio de todos aqueles guardados, Ricardo encontra um daqueles desenhos que ele fazia das criaturas que o assombrava para poder descrever para os seus pais o seu terror. O desenho era grotesco já que era feito por uma criança, mas mesmo assim aquela desengonçada e bizarríssima criatura esboçada naquele velho papel, poderia arrepiar qualquer um, principalmente quem conhecesse o drama de Ricardinho. E como não poderia ser diferente, o mesmo quase fica em choque com aquele velho desenho em mãos. Ele se arrepia dos pés a cabeça, começa a ter algumas tremuras e até ensaia um leve choro, mas quando volta a si, ele resolve fazer o que sua mãe não fez, ou seja, queimar aquele desenho do mal. E quando já está com o isqueiro na mão, ao acendê-lo, neste mesmo instante a campainha toca. Ele deixa o desenho cair e corre para atender, mas ao chegar lá estranhamente ele nota que não havia ninguém ali. Ele fica cismado, mas volta para pegar o desenho que simplesmente havia sumido. Ele fica ainda mais cismado, inicia uma procura desesperada, mas como sabe que ele deixou cair de qualquer jeito mesmo e que só ele morava ali, logo logo aquela horripilante gravura apareceria debaixo de qualquer móvel daquele. Ele então deixa pra lá e segue para terminar de arrumar a casa já que Deborah, sua linda namorada e uma das maiores motivações para ele morar sozinho, estava prestes a chegar. E após fazer isso, passa algum tempo até que Deborah finalmente chega. Os dois teriam mais uma noite juntos. Esta por ironia era aficionada em filmes de terror e sabia qual o canal onde estaria passando uma 'maratona' de tais filmes, mas Ricardo diz que devido ao tratamento com o seu psicólogo, ele teria que evitar o máximo tais tipos de atração, já que seu psicológico não poderia sofrer qualquer tipo de 'influência pavorosa' mesmo que fosse através de um simples filme. E ao ouvir isso, Deborah que também era confidente do namorado, por saber do problema do mesmo, que em outra noite se assustara até com sua camisola deixada pendurada na parede, compreende e sendo assim os dois dividem a noite 'se curtindo' apenas. Nos dias que se seguiram, Ricardo que fazia estágio na empresa de um amigo da família, seguia com sua rotina apesar de ainda se pegar tendo que mesmo que 'por impulso', acendendo todas as luzes de seu flat assim que chegasse no mesmo. Era estranho, mas parecia que ele sem sentir, estava tendo algum tipo de 'recaída'. Aquela temida pareidolia estava parecendo querer voltar a lhe assombrar. Ricardo começava a se sentir observado pelas janelas apesar de seu apê ser quase um dos últimos daquele grande prédio. E com tal desconforto, ele compra cortinas e também estranhamente começa a esvaziar quase que por completo o seu quarto, não deixando nada encostado nos cantos ou pendurado nas paredes para que ganhasse 'formas' durante a madrugada e assim tornasse a assombrá-lo. Preocupado, Ricardo liga para a sua família, que resolve ir visitá-lo. Todos vão até lá, e além de confraternizar com ele, apesar daquele velho ceticismo geral, todos procuram confortá-lo ao máximo e até se oferecem para fazer companhia a ele ou o convidam para passar uns tempos na casa deles, seu antigo lar. Toda aquela alegria dos seus irmãos caçulas brincando pela casa e o amor dos demais familiares, seu pai, mãe e irmã, dera a Ricardo um certo conforto naqueles momentos. Lhe fora dito que a solidão também poderia lhe 'pregar peças', e que ninguém ali, no fundo, nunca, fora muito a favor de que ele tomasse a atitude de ir morar sozinho, já que no passado, ele enfrentara tantos problemas com os assombros que o atormentava daquele jeito. E após essa amorosa visita, Ricardo se despede de seus familiares dizendo que estava bem mais tranquilo, mandando assim os mesmo não se preocuparem, pois ele ficaria bem. E mais tarde, a madrugada chega e após se rolar um pouco naquele sofá-cama já que ele evitava o quarto, assim que Ricardo finalmente pega no sono, ele, mesmo em estado letárgico, sente uma estranha presença naquela sala. Alguém parecia ter se sentado ao seu lado e começava a alisar o seu corpo de uma forma terna e agradável. Ele estranha, mas não deixa de gostar daquilo. E é quando essa figura misteriosa resolve se deitar e se enrolar com ele naquele sofá-cama. Seria Deborah?! Ele se perguntava meio sonhando e meio acordado. Ele tinha muitas dúvidas já que naquele instante, ele não se lembrava de ter deixado alguma chave que fosse com a menina e também não sabia se aquilo se tratava de um 'sonho erótico'. Mas o que ele sentia era agradável demais para ficar se questionando e não aproveitando. O misterioso ente que já pesava em seu abdômen, já deixava de lado as 'preliminares' e partia com tudo se entregando a Ricardo e fazendo o mesmo se entregar àquele 'insólito prazer'. Quando Ricardo finalmente 'goza', seja quem ou o que fosse, sumiu como num passe de mágica e naquele ímpeto, Ricardo desperta e rapidamente corre para acender a luz. Ele fica cismado, mas também tenta se fazer acreditar que aquilo fora um sonho apesar da parte de baixo de seu pijama estar toda 'úmida'. Deborah nunca esteve ali, mas alguém ou alguma coisa esteve...! E que cheiro estranho e forte, parecido com o de enxofre era aquele? Era também outra de suas dúvidas. Nas noites seguintes, o suposto 'súcubo' que o atacara não retornou, mas a pareidolia continuava a dar novos sinais, e Ricardo se via obrigado a se livrar de mais objetos que pudessem lhe causar susto durante a noite. Seu flat já começava a parecer uma casa de 'alguém que estivesse de mudanças' ou mesmo 'abandonada' de tão espaçoso que começara a ficar. Até aquele velho palhacinho que ele guardava desde a infância, acabou indo parar numa caixa. Mas uma outra coisa ainda mais do que curiosa também começava a acontecer. Estranhamente, vultos que eram reproduzidos por coisas que Ricardo já havia retirado de determinado lugar, misteriosamente continuavam a surgir. Ricardo de pronto se apavorava, mas quando corria para acender a luz, o tal vulto desaparecia. O abajour que ele comprara, também não era suficiente, a pareidolia parecia ser mais forte do que aquilo e lhe trazia mais imagens assombrosas. E já se desesperando, Ricardo pede para Deborah passar a ficar dormindo por uns tempos com ele. Esta ainda ameaça brincar com o namorado, mas vendo que o mesmo que já se queixava de ouvir vozes misteriosas a lhe chamar de madrugada, parecia ainda muito assustado, esta resolve se manter séria e ouvir o seu apelo. Ela dorme por alguns dias e nestes dias nada de anormal acontece. Por algum tempo a pareidolia havia dada alguma trégua ao jovem que quando torna a dormir sozinho, mas quando o mesmo começa a amanhecer com estranhas marcas ou cortes em forma de cruzes que misteriosamente surgiam em algumas partes de seu corpo, este resolve colocar câmeras pelos cômodos do flat para ver se estas flagravam qualquer movimento ou manifestação 'sobrenatural' que fosse. E nisso, enquanto instalava aquelas câmeras, Ricardo nota mais uma coisa estranha. Aquele seu desenho feito quando ele ainda era uma criança finalmente reaparece. Mas desta vez, o desenho parecia ter sofrido algum tipo de 'acabamento' ou melhoria. Ele estava muito bem definido e definitivamente não parecia ser o mesmo desenho e nem ter sido feito por uma criança. Mas aquela criatura, ali desenhada ainda era a mesma e ainda mais apavorante e agora muito bem realçada. Aquela aparência ao mesmo tempo cadavérica e demoníaca, aqueles olhos assustadores e ameaçadores, agora parecendo vivos e a lhe fitar. Aquela cabeleira ou guedelha desgrenhada, aquelas presas e mãos ou garras que Ricardo jamais esquecerá de vê-las quando criança saindo de baixo de sua cama ou da porta daquele armário de onde tal ser também ameaçava sair. Mas desta vez Ricardo finalmente destrói aquele desenho maldito. E um certo alívio lhe toma nesta hora que também é a mesma em que a campainha toca o fazendo ir atender, mas de novo se deparar com ninguém no corredor. E com tais câmeras já instaladas, já se daria o que Ricardo esperava ser um verdadeiro 'show de horrores' em seu flat. As primeiras gravações mostram algumas coisas estranhas acontecerem pelo flat de madrugada, como portas de móveis se abrirem sozinhas, coisas que caíam também sozinhas, a caixa onde estava aquele palhacinho também começar a se mover como se aquele boneco 'quisesse sair dali' e até estranhos vultos que surgiam tanto pelo ar como próximo a Ricardo quando este se encontrava em estado letárgico. Ele mostrava os resultados dos vídeos para seus familiares, sua namorada e alguns amigos, mas todos eram céticos e sempre procuravam alguma explicação como 'correntes de ar' e 'baixa qualidade' das câmeras cujas alguns 'sinais de estática' ou interferências acabavam reproduzindo imagens que parecessem com a de fantasmas ou qualquer outra criatura. Preocupados, os pais de Ricardo não vêem outra saída a não ser mandar que o mesmo vendesse o flat e retornasse para a casa dos pais para retomar seu tratamento com o psicólogo. E sendo assim, apesar de se sentir frustrado com a ideia de que ninguém acreditava em seus assombros, Ricardo acaba tendo que concordar com a proposta. E mais uma vez, ele vai para o divã. O tratamento feito com o mesmo pelo médico é bem mais forte, e desta vez Ricardo puxando pela memória finalmente revela que bem antes de tudo isso começar a lhe acontecer, ele realmente assistia muitos filmes de terror escondido, conforme seus pais já suspeitavam, e que além de ficar se comunicando com misteriosos 'amigos imaginários', ele também ficava fazendo caretas e outras brincadeiras com o espelho, costumava brincar de fazer figuras com a própria sombra nos momentos em que faltava luz em sua casa, e quando viajava para a casa de uns parentes no interior, junto com um primo, ele se deitava num 'tufo' à sombra de um bambuzal onde os dois ficavam brincando de 'criar figuras' para as nuvens que observavam passar. E com toda essa revelação contribuindo para o tratamento, além da força de vontade do jovem, com o passar do tempo, apesar de nunca deixar de precisar do acompanhamento de alguns remédios, o mesmo parece mais uma vez livre e quem sabe definitivamente, daquele mal que tanto o assombrara ao longo de sua vida. E após muita insistência com o seus pais ainda receosos, ele consegue um novo flat. Ele tem certeza de que agora estava curado e que não haveria problema algum. E sendo assim, ao conseguir convencer sua família, ele está em seu novo flat num outro bairro e lá, após uma longa maratona de filmes, ele se prepara para dormir, o que seria finalmente e verdadeiramente uma noite de sono saudável. Ele confiante apaga todas as luzes após beber um copo d'água, e quando seguia para a sua cama, um barulho na janela logo o assusta, mas ele logo se alivia ao ver que só se tratava do vento que soprara as cortinas já que a janela se encontrava entreaberta. E ao se certificar de tal coisa ele suspira e sorri aliviado ao seguir para fechar a mesma. E quando já está na cama, coberto com o seu edredom até o pescoço, se mantendo com o olhar fito nas paredes, ele já começava a se concentrar para pegar no sono. Suas vistas começavam a pesar, mas seus outros sentidos ainda insistindo em se manterem alerta 'brigavam' para que o mesmo ainda permanecesse acordado. Ele piscava os olhos a dar leves cochilos, e quando outro movimento no ambiente faz com que ele acordasse novamente, ele dá de cara com a terrível presença daquela criatura que ele desenhara em sua infância e que até os seus dias de adulto o perseguia. Esta estava deitada junto a ele e de frente para ele naquela cama, e antes que ele pudesse gritar, a horrenda aparição põe sua mão ou garra gélida e assustadora em sua boca e com uma força inacreditável, o pega pelos braços e o arrasta para de baixo da cama onde juntos desaparecem. Ricardo nunca mais seria visto, para desespero de sua família e de todos os que o amavam. Apesar de se sentir curado, ele ainda mantinha o hábito de deixar câmeras espalhadas para gravar o ambiente, mas estranhamente nada do acontecido fora registrado. Era como se os vídeos fossem 'editados' exatamente na hora do ataque e do desaparecimento do rapaz. Não havia nenhuma pista, apenas aquele desenho bizarro feito por Ricardo ainda criança, era o que restara em sua cama. Apesar do mesmo tê-lo destruído, o desenho se encontrava ali, intacto e ainda mais realçado e realista ao descrever o suposto responsável pelo desaparecimento daquele jovem assombrado.

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